"The Lovely Bones”, o primeiro romance de Alice Sebold, é o maior fenômeno literário dos últimos anos. Foi o livro de ficção mais vendido nos EUA em 2002, com 1,5 milhão de cópias. E chega ao Brasil com o título de Uma Vida Interrompida - Memórias de um Anjo Assassinado.
É preciso muita ousadia para escrever um livro assim. A narradora desta história tem apenas 14 anos e sonhava ser fotógrafa enquanto ainda tinha toda a vida pela frente. O livro é, em si, uma contradição: cheio de humor e esperança, apesar de ter como pontapé inicial o estupro e assassinato de uma adolescente. A história de Susie Salmon ("como o peixe", diz ela, na primeira linha do romance), quando começa a se desvelar na sua frente, faz os compromissos, assim como os amigos, a família, a fome, o sono e até o celular tocando, parecerem bem pouco interessantes e menos urgentes. Os "ossos" do título em inglês não são os restos de Susie, a menininha que conta a história depois de morta. São a estrutura sobre a qual a vida é construída. Outra audácia é a de colocar Susie Salmon no céu. Sim, é para cima que vai nossa protagonista. E é para baixo que ela olha, com olhos atentos, enquanto conta a história de sua família , agora traumatizada, de como seu assassino planeja os detalhes minuciosamente para não ser descoberto, de como a polícia não tem nenhuma pista sobre como chegar a ele.
A partir daí ela conta que, por estar incorformada com sua morte precoce, e um tanto entediada com a vida no Céu, decidiu acompanhar como sua família, amigos e o próprio assassino continuaram suas vidas após a tragédia. Então sabe dos sentimentos inadequados que sua mãe começa a ter depois de sua morte, o jeito desesperado como seu pai começa a agir, a vergonha de sua irmã mais nova, que agora é a garota mais popular e ao mesmo tempo mais rejeitada do colégio, e o desnorteamento de seu irmãozinho de 4 anos, que simplesmente quer ver os pais pararem de chorar e saber quando sua irmã mais velha chega “de viagem”. E o menino de quem Susie gostava continua a sua vida, e acaba se vendo envolvido em um acontecimento milagroso.
Mas não é justiça o que busca Alice Sebold, a autora do livro. Não nesta obra. Aqui, é o pai da menininha morta, Jack Salmon, e o chefe da polícia local, Len Fenerman, os que mais querem vingança. A escolha do tema tem a ver com a vida da própria autora. Alice Sebold, aos 19 anos, quando estava no primeiro ano de faculdade e ainda sonhava ser poeta, foi estuprada em um beco do campus da universidade. Ao chegar à delegacia, machucada, assustada e não mais virgem, ouviu de um dos investigadores que várias mulheres haviam sido estupradas e mortas no mesmo beco antes dela. Alice Sebold queria criar um romance de ficção quando pensou na história que viria a se transformar em Uma Vida Interrompida. Não escreveu seu livro de memórias para desabafar ou por um desses impulsos de escritor que vez por outra aparecem em entrevistas. Escreveu por consideração à Susie Salmon, sua personagem principal. "Uma Vida Interrompida" é luminoso e surpreendente, um romance que constrói, a partir da dor, a mais esperançosa das histórias. Alice Sebold transforma uma tragédia inaceitável, o luto de uma família e a impossibilidade da justiça em boa literatura, cheia de humor e esperança."
Com um tema forte e doloroso, este livro faz o milagre de valorizar a vida. A narradora e personagem principal, Susie Salmon, já morta desde a primeira página do livro, consegue encantar o leitor à medida que narra a história de sua família, e amigos, após a tragédia do seu assassinato. Habitando o céu da sua imaginação, na companhia de uma amiga e uma conselheira, Susie se entristece pelos vivos, e procura acompanhar seus passos, e até mesmo interferir nos seus destinos.
Durante a narrativa, interessante é ver como cada um lida com a morte. O pai, com total revolta e inconformismo, é tomado pela tristeza e pela necessidade de justiça, nem que seja pelas próprias mãos. A mãe encontra na negação a resposta para continuar vivendo. A irmã faz-se dura, insensível, impenetrável. E o pequeno irmãozinho não entende ainda o que aconteceu.
As passagens da família são observadas por Susie durante cerca de dez anos. O acontecimento trágico marcou o destino de todos, para o bem ou para o mal. Ao mesmo tempo em que pai e mãe se distanciam, o pai se aproxima dos filhos e a mãe se afasta totalmente, chegando a atitudes extremas como fugir, trair, mentir. Lindsey, a irmã de Susie, é a mais modificada, sendo vista como a substituta, aquela que terá que atingir os desejos dos pais. Revoltada a princípio, ela vai se transformando numa garota forte e segura, pronta para seguir a vida com suas próprias idéias.
Ainda no livro temos Ray, o menino que Susie gostava, presente como suspeito, e mais a frente, participando de um episódio sobrenatural. Há, ainda, Ruth, amiga de Susie, que foi tocada por ela no momento de sua morte, e que se tornou uma garota estranha, vivendo em paralelo com a Susie falecida, chegando ao ponto de querer ser Susie, e, depois de adulta, dedicada aos fenômenos místicos. A autora enfoca também a vida do assassino, de identidade conhecida pelo leitor desde o primeiro capítulo, descrevendo em detalhes os seus procedimentos, a sua infância, e a sua vida após o crime.
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Saorsie Ronan em cena de Um Olhar do Paraíso. Foto: Divulgação |
Meu sobrenome era Salmon, salmão, igual ao peixe; meu primeiro nome era Susie. Eu tinha 14 anos quanfo fui assassinada no dia 6 de dezembro de 1973. Nas fotos de meninas desaparecidas que saíam nos jornais nos anos 1970, a maioria se parecia comigo: meninas brancas de cabelos castanhos cor de camundongo. Isso foi antes de todas as raças começarem a aparecer nas caixas de leite ou na correspondência diária. Ainda era na época em que as pessoas acreditavam que coisas assim não aconteciam.
No meu livro de classe do ginásio coloquei a citação de um poeta espanhol a quem minha irmã tinha me apresentado, Juan Ramon Jimenez. Dizia mais ou menos o seguinte: “Se alguém lhe der uma folha de papel pautado, escreva no sentido contrário”. Escolhi essa citação tanto porque ela expressava meu desprezo pelos ambientes estruturados do tipo sala de aula e porque, já que não era uma citação ridícula de alguma banda de rock, pensava que ela mostrasse meus dotes literários. Eu fazia parte do Clube de Xadrez e do Clube de Química e queimava tudo o que tentava fazer na aula de prendas domésticas da sra. Delminico. Meu professor preferido era o sr. Botte, que lecionava biologia e gostava de animar os sapos e lagostins que tínhamos de dissecar fazendo-os dançar em suas tigelas enceradas.
A propósito, eu não fui morta pelo sr. Botte. Não pensem que todas as pessoas que vão encontrar aqui são suspeitas. É esse o problema. Nunca se sabe. O sr. Botte compareceu à minha homenagem (assim como, devo acrescentar, quase todo o colégio em que eu estudava — nunca fui tão popular) e chorou bastante. Ele tinha uma filha doente. Todo mundo sabia disso, então, quando ele ria das próprias piadas, que já eram velhas muito antes de ele virar meu professor, nós também ríamos, às vezes nos forçando, só para deixá-lo feliz. A filha dele morreu um ano e meio depois de mim. Ela tinha leucemia, mas nunca a vi no meu céu.
Meu assassino foi um homem do nosso bairro. Minha mãe gostava das flores dos canteiros dele, e meu pai uma vez conversou com ele sobre fertilizantes. Meu assassino acreditava em coisas antiquadas, como casca de ovo e borra de café, que segundo ele sua própria mãe tinha usado. Meu pai chegou em casa sorrindo, fazendo piadas sobre como o jardim do cara podia ser lindo, mas que teria um fedor insuportável quando chegasse o calor.
O trecho acima vem do parágrafo inicial de Uma Vida Interrompida: Memórias de um Anjo Assassinado, de Alice Sebold – que começa, como definiu a jornalista Katharine Viner emuma entrevista com a autora para o Guardian, com “o tipo de frase que te faz famoso”. O livro, lançado em 2003, tornou-se best-seller imediato e deu origem ao filme do aclamado Peter Jackson que estreou esta semana em Porto Alegre e que tem o nome em português de Um Olhar do Paraíso (em tempo: não entendo por que em casos como esse ou o de Ilha do Medo, de Martin Scorsese, as distribuidoras preferem alterar completamente o nome de um filme baseado em um livro). Uma Vida Interrompida narra, como a maioria a essa altura já sabe, a história de Susie Salmon, uma jovem de 14 anos estuprada e morta por um vizinho esquisito depois de ingenuamente seguí-lo até um esconderijo subterrâneo que o homem havia cavado em um milharal próximo de sua casa. Fascinada por ciências, mesmo achando estranho o modo como o vizinho a olha, Susie entra no esconderijo curiosa por saber ciomo ele havia sido construído, um refúgio cavado no solo seis degraus abaixo do chão e protegido por uma porta de madeira – como ela mesmo diz no trecho, era um tempo em que “as pessoas acreditavam que coisas assim não aconteciam“, o que explica a confiança imprudente com que ela segue o estranho que termina por violentá-la e esfaqueá-la até a morte.
É um livro com um início mais que promissor pelo impacto que provoca, pela maneira neutra e desapaixonada como a garota vai narrando o horror infligido pelo seu assassino. Depois de morta, em uma ideia que mescla noções espíritas e católicas, Susie vai para seu “céu particular”, para ser orientada a aceitar que está morta. Não exatamente um “céu particular”, melhor dizendo. É o mesmo céu para todo mundo, mas cada um o vê de modo diferente. Para Susie, o “paraíso” “tinha traves de futebol ao longe e mulheres lançando pesos ou dardos em câmera lenta“. Ali, também, “todos os prédios se pareciam com ginásios suburbanos do nordeste americano construídos nos anos 60. Prédios grandes e atarracados espalhados por terrenos arenosos com projetos paisagísticos ruins, e anexos e espaços abertos para fazê-los parecer modernos“. De lá, ela acompanha a busca por seu corpo desaparecido (o cachorro de um vizinho encontra apenas o cotovelo, daí o título original The Lovely Bones, os “ossos amorosos”), a progressiva desagregação de sua família – a mãe, sem vocação desde o início para a maternidade, lida com o desabar de seu mundo com um caso extraconjugal; o pai desafoga a dor na obsessão por desvendar o que aconteceu com sua filha – e a impunidade tranquila de seu assassino, que chega a oferecer condolências para a família no funeral e alguns anos depois passa a olhar perigosamente para a irmã mais nova de Susie.
Esse ponto de vista narrativo, entretanto, não é exatamente um trunfo do livro. Histórias narradas por mortos, qualquer leitor brasileiro com meio neurônio sabe, não são exatamente novidade. E o ponto no qual Uma Vida Interrompida difere brutalmente de livros comoMemórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis ou o provocativo Como Vivem os Mortos, do inglês Will Self (leitor de Machado, diga-se) é justamente pela ausência de acidez e pela necessidade de, mais para o fim, abandonar a perspectiva descarnada que insinuava no início para investir cada vez mais em uma redenção sentimental ao gosto médio do apreciador de Sessões da Tarde. Ao calibrar sua narrativa para a emoção, Sebold parece desfazer-se daquilo que seria a principal qualidade de seu romance - o desapego do morto e a inevitável ironia ácida disso resultante.